quarta-feira, 24 de novembro de 2010

“A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER”

Fragmentos do romance “A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER” de Milan Kundera - Pag. 96-97

[...] Logo no começo do Gênesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Gênesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito - Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrela -, para que todas as evidências do Gênesis ficasse logo posta em questão.

[...] Tereza lá vai caminhando com o seu rebanho, lá vai obrigando as vitelas a seguirem à sua frente, lá vai ralhando ora com uma, ora com outra, porque as vaquinhas estão todas bem-dispostas e passam o tempo a fugir do caminho para irem correr para os campos. Karenine também lá vai caminhando. Há mais de dois anos que vai todos os dias atrás dela para as pastagens. Costuma divertir-se imenso a disciplinar as vitelas, a ladrar-lhes e a injuriá-las (o seu deus encarregou-o de reinar sobre as vacas e ele tem muito orgulho nisso). Mas hoje, como tem uma ferida a sangrar numa pata, lá vai saltitando com grande dificuldade nas outras três. De dois em dois minutos, Tereza baixa-se para lhe fazer festas nas costas. Quinze dias depois da operação, é cada vez mais evidente que o cancro não foi irradiado e que Karenine não tem cura.

A meio do caminho, encontram uma vizinha que vai para o estábulo, calçada com as suas botas de borracha. A vizinha pára para perguntar a Tereza: - "O que é que o seu cão tem? Parece que vai a coxear! - Tereza responde: - Tem um cancro. Só lhe resta muito pouco tempo de vida -, e sente a garganta tão apertada que mal consegue falar. A vizinha apercebe-sé das lágrimas de Tereza e põe-se quase a ralhar com ela: - Santo Deus! Não me diga que se vai pôr a chorar só por causa de um cão! - É uma boa mulher. Não o disse por maldade, mas para tentar consolar Tereza. Tereza tem consciência disso e já vive há tempo suficiente na aldeia para saber que, se os camponeses gostassem tanto dos seus coelhos como ela gosta de Karenine, não matariam nenhum e não tardariam também a morrer de fome rodeados de bichos por todos os lados. No entanto, sente o que a vizinha lhe disse como uma hostilidade. - Eu sei -, responde ela sem protestar, mas despede-se rapidamente e prossegue o seu caminho. Sente-se sozinha com o seu amor pelo seu cão. Pensa, com um sorriso melancólico, que tem de disfarçá-lo melhor do que se tivesse de esconder uma infidelidade. Ter amor por um cão é uma coisa escandalosa. Se, em vez disso, a vizinha tivesse sabido que andava a enganar Tomas, só teria recebido uma palmada cúmplice nas costas!

Prossegue; portanto, caminho com as suas vitelas. [...] Nada mais tocante do que vacas a brincar. Tereza olha para elas com ternura e pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de há dois anos para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a tênia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga. O homem é um parasita da vaca - seria certamente a definição que a zoologia de um não-homem daria do homem.

Pode não ver-se nesta definição mais do que uma simples brincadeira, merecedora apenas de um sorriso de indulgência. Mas se Tereza a levar a sério, arrisca-se a encetar uma queda vertiginosa: é um pensamento perigoso que pode afastá-la da humanidade. Já no Gênesis, Deus encarregou os homens de reinar sobre os animais, mas isso pode explicar-se dizendo que esse poder apenas foi emprestado. O homem não era o proprietário, mas um simples gerente do planeta; mais dia menos dia, teria de prestar contas pela sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem - dono e senhor da natureza -. O que não deixa de ser uma coincidência interessante é o fato de ser precisamente esse mesmo Descartes que nega categoricamente que os animais tenham alma. O homem é proprietário, e dono, enquanto, segundo Descartes, o animal não passa de um autômato, de uma - machina animata -, ou seja, de uma má quina animada. Quando o animal geme, não quer dizer que se queixe: só quer dizer que tem uma peça a ranger. Quando a roda de um carro de cavalos chia, isso não quer dizer que a charrete tenha uma dor: é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser interpretadas da mesma maneira, e é perfeitamente estúpido lamentar a sorte de um cão dissecado em vida num laboratório.

Enquanto as vitelas pastam, Tereza senta-se num tronco e Karenine deita-se ao pé dela, com a cabeça pousada no seu colo. [...] Tereza acaricia a cabeça de Karenine mansamente deitada no seu colo. Faz mais ou menos o seguinte raciocínio: Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder lá viver, e, até com o próprio Tomas, é obrigada a portar-se como uma esposa desvelada porque ela precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.

Uma vitela=novilha aproxima-se de Tereza, estaca ao pé dela e fica a observá-la demoradamente com os seus grandes olhos castanhos. Tereza conhece-a bem. Chama-lhe Margarida. Gostava de ter batizado todas as vitelas, mas não conseguiu. Não havia nomes que chegassem. Há trinta anos, pelo menos, com certeza que ainda era assim, com certeza que todas as vacas da aldeia tinham nome. (E se o nome é sinal da alma, pode bem dizer-se, custe o que custar a Descartes, que as vacas tinham alma.) Mas, depois, a aldeia tornou-se uma fábrica cooperativa e as vacas nunca mais saíram, durante toda a vida, dos seus dois metros quadrados de estábulo. Deixaram de ter alma e passaram a não ser mais do que - machinae animatae - . O mundo deu razão a Descartes.

Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar.

A cena passava-se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado. Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo. E é desse Nietzsche que eu gosto, tal como gosto da Tereza que tem ao colo a cabeça de um cão mortalmente doente e que a afaga. Ponho-os um ao lado do outro: tanto um como o outro se afastam da estrada em que a humanidade - dona e senhora da natureza, prossegue a sua marcha sempre em frente...